(...)

"Mas eu não quero ir ter com os loucos", observou Alice.
"Não tens alternativa". Retorquiu o Gato.
"Nós aqui somos todos loucos. Eu sou louco, tu és louca".
"Como é que sabes que eu sou louca?" perguntou Alice.
"Deves ser", disse o Gato, "ou não terias vindo até aqui".

20080627

Vermelho-Sujo

Penso que o pecado consumado da inveja, muito meu para com escritores, poetas e afins, foi a única razão que me impeliu a tomar-lhes este rumo, que me é desconhecido (ou pelo menos não tão familiar). Letras. Palavras. Frases. Quero com elas expulsar do meu interior pútrido, confusos sentimentos repetitivos como este maldito tic-tac de um enorme relógio de cuco numa fria sala obscura e solitária de cor vermelho-sujo…Não! Exijo que elas exorcizem todo o mal/bem que possuo dentro do meu peito para que depois, finalmente desprovido de sentimentos, me torne um ser sem sensibilidade de espírito. Poderei até, mais tarde, permitir-me observar parte daquilo que outrora pensei me fazer sentir vivo, (como agora penso que faz?) no entanto, sem remorsos ou estúpidos sentimentos de culpa. (oh doce engano venenoso que me adoças os lábios e aqueces o coração). Ou então, que ao reler-me nesse (espero) distante momento, não me fizesse sentir tão cadavericamente esvaziado como nos demais anos que o tempo não tem vindo a perdoar ao meu desgastado-pelo-uso motor vermelho.

Assemelha-se-lhe o tempo, caprichoso.

A sua presença, ora radiante ora implacável, todavia omnipresente, exerce sobre mim uma espécie de aperto invisível, que actua como um poderosíssimo torniquete metálico ou mesmo talvez como a pressão que se encontra no fundo dos oceanos inabitavelmente gelados. Invade-me o peito em repentinos movimentos repetidos (como o ponteiro dos segundos naquele velho relógio) até que finalmente convergir na mais pavorosa estagnação.

Sim…é, tal como o inevitável fluir do sempre fugaz tempo, implacável. Ainda assim, até o tempo com o seu imparável avanço possui momentos mortos.

Afastou-se finalmente.

Mata-me! Rápido! (Não. Lentamente, por favor…)

Degrada-me ainda mais um pouco a cada avanço (agora mais vagaroso) do ponteiro dos minutos desse antiquado relógio de cuco. Mas sempre que se aproxima a (nossa) hora marcada, quando o culminar do esforço sentimental desse ponteiro para se encontrar com a sua amante na casa das 12 atinge o seu expoente máximo, quando esse mesmo fabuloso momento chega, o cuco não canta. A portada da sua moradia abre-se… porém, já ninguém habita a escura e húmida abertura no topo do velho relógio de mogno. E o pesaroso silêncio instala-se por todo o espaço vazio da sala vermelho-sujo. A mesa já não tem tampo e as cadeiras já não têm encosto. As outrora belas orquídeas prostradas num vaso requintado no peitoril da única janela da sala apresentam um aspecto quase miserável. Já não é confortável.

Mas ele continua lá. Avança soluçante…faltam-lhe as forças. Apodera-se dele um sufocante cansaço. A sua passagem pela casa das 12, algo que já se lhe tornara familiar, avizinha-se agora como uma tarefa praticamente impossível de se repetir…e quantas foram essas pecaminosas repetições! Ainda que sempre breves, nunca deixaram de ser imbuídas num deleite tal que o desejo do regresso ás 12 tornara-se quase uma obsessão. Mas o velho relógio de mogno era de corda…e quem iria entrar naquela sala fria e de texturas vermelho-sujo para lhe dar o último laivo de força que ele precisava?

Parou enfim…

O canto do cuco nunca mais será entoado. O maldito tic-tac suave dos ponteiros não mais se irá ouvir.

Ficou agora vazia, a sala vermelho-sujo… verdadeira e inevitavelmente vazia…

2 comentários:

Anónimo disse...

Já li este texto umas 20 vezes *,P

E, sinceramente, agora que o quero comentar, tenho medo de não o honrar, de que as palavras que vá dizer não sejam as perfeitas para o fazer *,)




Gostei especialmente da parte: "Sim…é, tal como o inevitável fluir do sempre fugaz tempo, implacável. Ainda assim, até o tempo com o seu imparável avanço possui momentos mortos."



Muito bom *,)

Unknown disse...

Apesar de não ter colocado/vir a colocar os textos/poemas por ordem de criação, este terá sido um dos primeiros textos que escrevi, já com alguns anitos... acho que estava mal... seja lá o que "estar mal" signifique na realidade e seja lá o que "realidade" signifique também... acho que lá no fundo, nem estava mal. Acho que apenas me queria sentir mal...